
Nos últimos dias, foram apresentadas queixas junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sobre “alegadas situações de violência psicológica e física” no programa “Big Brother”, emitido pela TVI, envolvendo o ex-concorrente Bruno de Carvalho, antigo presidente do Sporting. A entidade ainda está a avaliar essas participações e não se espera uma deliberação para breve, mas podem estar em causa infrações à Lei da Televisão, atualizada pela última vez em 2020.
“Programas como o Big Brother favorecem e estimulam mais polémicas, maior agressividade e maior violação da intimidade e da vida privada”, começa por dizer Alberto Arons de Carvalho, docente universitário e especialista em Direito da Comunicação. “Não me espanta que haja situações no limite do aceitável”, continua, remetendo para o artigo 27 da referida lei — que diz respeito aos limites à liberdade de programação e que, “em princípio, aplica-se a esta situação”.
“Nas várias normas desse artigo são referidas, por exemplo, questões relacionadas com imagens violentas”, resume o docente, mencionando, em concreto, os dois primeiros pontos, segundo os quais “a programação dos serviços de comunicação social audiovisual deve respeitar a dignidade da pessoa humana, os direitos específicos das crianças e os jovens, assim como os direitos, liberdades e garantias fundamentais”, não podendo os meios de comunicação, através da sua programação, “incitar à violência ou ao ódio contra grupos de pessoas ou membros desses grupos em razão do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social (…)”.
Analisadas as participações e ouvidos os vários intervenientes, incluindo a estação televisiva. Arons de Carvalho, que foi vice-presidente do Conselho Regulador da ERC entre 2012 e 2017, explica que o regulador pode optar por fazer recomendações ao canal de televisão em causa para que “não continue com as práticas que levaram às participações”.
Também pode “obrigar o órgão de comunicação social a divulgar as conclusões da deliberação nos seus próprios canais e plataformas”, mas é improvável que o faça. “Só acontece em casos mais graves e excecionais. Normalmente, a deliberação é divulgada no site da ERC e enviada diretamente para as partes envolvidas”, explica o docente, para quem se deveria recorrer mais vezes a esta prática. Em cerca de 4500 deliberações feitas pela ERC desde 2006, apenas 42 foram acompanhadas dessa obrigação, o que representa menos de 1% do total. “Todas as semanas, são feitas entre cinco a dez deliberações e ninguém sabe. São raríssimos os casos em que há, de facto, esse conhecimento.”
Deliberação não deverá ser conhecida “nos próximos seis meses”
Independentemente do desfecho, o processo poderá arrastar-se vários meses, não se prevendo que haja uma decisão por parte da ERC num prazo inferior a meio ano. “Uma coisa é o tempo mediático, outra é o tempo do regulador”, diz Arons de Carvalho, explicando que vão ter de ser ouvidas as várias partes envolvidas no caso, o que inclui a TVI mas também os concorrentes do programa.
“Tendo em conta a escassez de quadros no regulador em relação ao volume de trabalho e ao vasto leque de atribuições e competências, não prevejo que haja uma deliberação antes dos próximos seis meses”. Nessa altura, o “programa já terá terminado e o tema já não será polémico”, diz também. Em média, o prazo de deliberação da ERC é de “cerca de um ano, embora tenha diminuído nos últimos anos”.
Carlos Camponez, docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e especialista em Ética e Deontologia da Comunicação, também cita a Lei da Televisão para enquadrar as situações de alegada violência psicológica e física que tiveram lugar no programa da TVI, mas duvida que “sirva de base para uma intervenção da ERC contra o canal televisivo”.
“Será difícil dizer que o programa incita o ódio e a violência”, sublinha. Em todo o caso, “estará mais em causa o programa do que a situação de alegada violência”, diz, considerando que o ‘reality-show’ “coloca em causa a privacidade e outros valores de uma forma problemática”.
A ética paga?
Arons de Carvalho concorda que seja feita uma discussão mais abrangente sobre o formato dos conteúdos televisivos. O momento para isso será o da renovação das licenças das operadores de televisão, quando é feita uma avaliação dos últimos anos. “Acho que a ERC não pode fugir à ponderação sobre o formato dos conteúdos, considerando se este formato é ou não aceitável face ao direito dos cidadãos de serem informados e terem acesso a informação qualificada e não polémica.” Referindo-se, especificamente, ao ‘reality-show’ da TVI, sublinha que “não está apenas em causa aquele comportamento concreto, mas o tipo de programa em si, que estimula estas situações”.
“As lógicas comerciais das audiências acabam por desvirtuar o próprio debate público e ético sobre questões como esta. Muitas vezes, são promovidas situações polémicas e eticamente questionáveis precisamente porque geram audiência”
Carlos Camponez, docente na Universidade de Coimbra e especialista em Ética e Deontologia da Comunicação
Para Carlos Camponez, a discussão é, assim, sobretudo ética. “São questões do domínio público. E podemos argumentar que houve uma certa passividade da TVI relativamente à situação.” Em todo o caso, trata-se de uma discussão com várias limitações, porque “as lógicas comerciais das audiências acabam por desvirtuar o próprio debate público e ético sobre questões como esta”.
Muitas vezes, “são promovidas situações polémicas e eticamente questionáveis precisamente porque, em alguns contextos, geram audiências”, diz o investigador, acrescentando que “há casos que são recorrentemente objeto de queixa, às vezes até de caráter legal e deontológico, e isso não tem efeitos, continuando os média na sua linha de repetição de problemas e mantendo as audiências”. “Adela Cortina, filósofa espanhola, dizia que a ética paga, mas tenho dúvidas sobre isso. O mercado já a desmentiu várias vezes.”
A “normalização da violência”
Também a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) recebeu várias queixas relacionadas com a participação de Bruno de Carvalho no programa da TVI. A informação é confirmada ao Expresso por João Lázaro, presidente da associação, para quem não é tolerável que “programas de grande audiência e grande impacto junto da população transmitam discursos e narrativas de normalização da violência”. Estas situações “acabam por legitimar outros casos”, diz, defendendo a necessidade de combater aquilo a que se refere como “normalização, promoção e incentivo da violência”.
A maior responsabilidade recai sobre os canais televisivos e os responsáveis pelos programas que são emitidos, aponta, lembrando o caso de violência física ocorrido na primeira edição do ‘reality-show’, em 2000, com um dos participantes a agredir outra concorrente. “Havia regras claras e ele foi expulso. Foi aplicada uma política de tolerância zero.”
Desta vez, não foi isso que aconteceu. Apesar de pressionada pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), que no domingo passado apresentou uma denúncia ao Ministério Público pelo “comportamento ameaçador” do ex-concorrente, e instou a TVI a agir de imediato, expulsando Bruno de Carvalho, a estação televisiva não tomou medidas. O antigo presidente do Sporting foi expulso no mesmo dia através da votação do público.
Segundo a CIG, o comportamento deste concorrente é “susceptível de configurar a prática de crime público de violência doméstica, na forma psicológica e física”. No comunicado que divulgou, a comissão adiantou ter tido conhecimento de vídeos divulgados nas redes sociais, retirados do programa em causa, “onde se pode assistir ao comportamento ameaçador do concorrente Bruno de Carvalho para com a sua namorada, a concorrente Liliana, chegando, inclusive, a agarrar o seu pescoço de forma indelicada e evidentemente desconfortável”.
Para João Lázaro, os meios de comunicação social têm uma “responsabilidade ética e moral” nestas situações. Quanto à queixa contra o ex-concorrente apresentada ao MP, explica que seguirá os “trâmites normais”, com uma averiguação da denúncia — que pode implicar a recolha de testemunhos de outros concorrentes do programa — para que se decida se a investigação avança. Durante este processo, também é possível sejam requisitadas imagens junto do canal televisivo.
Fonte: Expresso
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